Dr. Chico Guerra e “A Ação Peregrina”
Chico Guerra, advogado experiente em navegar pelos labirintos judiciais, se viu numa situação que mais parecia piada. Não, não era uma piada qualquer. Era daquelas que você conta para os amigos no bar e ninguém acredita, porque é absurda demais. Era o caso da ação que ninguém queria — ou, mais precisamente, o caso que o Judiciário parecia estar jogando de um lado para o outro, como uma batata quente.
Tudo começou com um cliente desesperado, o Sr. Teobaldo, que entrou no escritório com uma pilha de papéis e uma expressão que dizia: “Não sei mais para onde correr”. Seu caso havia sido declinado de competência… dezesseis vezes. Dezesseis! Chico mal conseguia acreditar. Cada juiz que recebia a ação parecia dizer “não é minha competência” e repassava a bola para outra comarca, que, por sua vez, fazia a mesma coisa, como se a ação tivesse uma praga que ninguém quisesse pegar.
— Doutor Chico, será que o senhor pode explicar o que está acontecendo? — perguntou Teobaldo, com um olhar entre a incredulidade e o cansaço profundo.
— Claro, seu Teobaldo. É simples… — Chico começou, ajeitando os óculos e folheando os papéis. — Imagine que seu caso é um pão amanhecido. Cada juiz olha para ele e diz: “Isso aí não é da minha padaria, leva para a próxima.” E assim seguimos.
Teobaldo piscou, confuso. Chico suspirou. Talvez ele precisasse de uma analogia melhor.
— Olha, seu Teobaldo, vou ser honesto. Isso aqui virou um tour judicial. Sua ação já visitou mais comarcas do que eu consigo contar. Se eu acreditasse em horóscopo, diria que Saturno está em oposição direta com a paciência de todos os juízes deste país.
Agora, uma pausa. Deixe-me falar diretamente com você, caro leitor. Já tentou explicar para alguém que seu problema foi recusado por nada menos que dezesseis juízes? Pois é. Se você acha que explicar física quântica é difícil, tente explicar declínio de competência para um homem que só quer resolver seu problema e seguir com a vida. Se tudo der errado, pelo menos posso processar o destino por danos morais, não é?
Chico sabia que, no fundo, o problema era o próprio sistema. Cada comarca alegava que o caso de Teobaldo era responsabilidade de outra. O processo já havia ido e voltado tantas vezes que, em determinado momento, um juiz o enviou para uma cidade que não tinha nada a ver com a situação. Aliás, o processo chegou a um ponto que foi parar em uma comarca especializada em Direito Agrário. Teobaldo era dono de uma oficina mecânica, e o caso envolvia um cliente furioso que alegava que seu carro saiu pior do que entrou. Não tinha nada de fazenda, gado ou colheita.
— E o que aconteceu depois? — Teobaldo perguntou, enquanto Chico folheava mais alguns documentos.
— Ah, então… — Chico limpou a garganta, tentando não rir de nervoso. — Depois de ser recusado na comarca agrária, o processo voltou para onde começou. Mas aí, a secretaria cometeu um engano e o mandou para outra cidade… de novo.
Teobaldo afundou na cadeira, parecendo um balão de ar esvaziando. Chico sentiu pena do homem. Mas o golpe final ainda estava por vir.
— E quando finalmente conseguimos que um juiz aceitasse o caso… ele suspendeu tudo até que as custas fossem pagas.
— Mas, doutor, eu tenho justiça gratuita! — protestou Teobaldo, levantando as mãos.
— Eu sei, seu Teobaldo, eu sei. Mas parece que o juiz esqueceu de olhar esse pequeno detalhe — Chico deu um sorriso amarelo. — Não se preocupe, vou fazer uma petição para lembrá-lo.
Na audiência final, o cenário foi digno de um teatro do absurdo. O juiz parecia completamente alheio ao histórico da peregrinação do processo. Quando Teobaldo tentou explicar o que havia acontecido, o juiz apenas ergueu a mão e disse:
— Vamos nos ater ao caso, por favor.
Chico, com seu humor ácido, não resistiu.
— Meritíssimo, posso garantir que estamos apenas tentando entender onde o caso deveria estar desde o começo. Se os astros se alinharem, talvez possamos resolver isso antes do próximo equinócio.
O juiz não riu. Teobaldo também não. Mas Chico tinha certeza de que alguém, em algum lugar, deveria estar achando graça de tudo aquilo.
O golpe de misericórdia veio logo depois. Quando finalmente parecia que tudo estava resolvido, o processo foi remetido a outra vara, por um motivo que nem Chico conseguiu entender. Teobaldo, exausto, levantou-se, olhou para Chico e disse:
— Doutor, talvez seja melhor eu vender a oficina e abrir um café. Quem sabe o destino seja mais fácil de negociar com cafeína.
Chico assentiu, e enquanto assistia Teobaldo sair, pensou: “Talvez eu também devesse considerar isso. Afinal, entre uma audiência e outra, um café poderia ser meu refúgio contra essa loucura.” E assim, lá se foi mais um cliente perdido pela peregrinação da justiça, enquanto Chico Guerra ficou ali, refletindo sobre a ironia de um sistema que deveria facilitar a vida, mas só fazia complicá-la ainda mais.